Para os antigos uma imagem servia a instruir, lembrar e emocionar. Ela tinha ainda o poder de transitus, permitindo que pudéssemos contemplar a partir dela as coisas invisíveis, o mundo sensível transfigurado em presença. Vivemos ainda os mistérios da imagem, já que a nossa voracidade em relação a ela é maior que o nosso entendimento. Aquela que surge da inscrição gráfica, o desenho, é a que nos aventuramos desde a infância; e que faz renascer em nós essa antiga tríade que nos temporaliza.
Os desenhos de Lilian Maus começam pela água através dos caminhos que o líquido cria em contato com o papel. Se existe um plano outro é o de esperar que ela evapore e que a mancha indique por onde prosseguir; e se possa adicionar mais camadas, cores, fazendo do fundo berço, nascedouro do trabalho. A memória da água é diferente da memória do gesto, e isso faz com que em seu trabalho a artista cultive os dois por fortuna e por leveza.
Um desenho talvez não precise esperar para secar, imediato que é. Mas é preciso esperar que ele brote, cresça e lentamente se revele. Um tempo para que a ideia se aceite como nova, para que a aceitemos como nossa. As metáforas de semeadura, crescimento e disseminação fazem com que pensemos a inscrição gráfica ainda mais como um espaço para o cultivo das ideias, para a revelação de memórias.
II
O sulco, a vala, o buraco de onde uma imagem nasce nos reposiciona em relação a nossa origem. Do mesmo modo que os encontros nos fazem pensar de onde partimos. O futuro é o modo temporal da projeção, onde conduzimos e somos conduzidos. Assim, o universo de referências construído pelo artista é alimentado por esses encontros e esses caminhos, da coleta daquilo que pode estar em perspectiva com seu modo de olhar o mundo, atualizando sua sensibilidade. A percepção desse material promove ainda outros deslocamentos, fazendo com que essas referências coletadas despertem relações pouco evidentes quando vistas de forma parcial ou isolada.
Lilian gosta de pensar que seus trabalhos formam um jardim (e me vejo olhando para os pátios, pois o jardim dos outros é sempre mais misterioso que o nosso). Talvez por isso o desenho seja seu instrumento de trato, um meio onde a leveza ganha gravidade. É assim que vejo suas letras e frases em plástico, grudadas em linhas e ramas, esperando um leitor que lhes dê sentido, que ande em torno e que as trate como hera, símbolo do contínuo que são.
Dos encontros da artista, Lilian reuniu séries como Área de cultivo, onde são fotografadas manchas, fungos e outras culturas que nos lembram o modo como seus desenhos, aos poucos, fecundam e germinam a folha de papel. O que a artista põe em relação são esses processos ao acaso que formam a periferia da nossa atenção, e que ela transforma em ação e determinação. Um trabalho simples que a arte procura nos fazer perceber: por vezes algo do tempo se condensa em nós, vira matéria, pesa e desaparece.
Agradeço ao projeto da galeria A Sala, Centro de Artes/UFPEL, coordenada por Adriane Hernández, por oportunizar encontros como este. É um prazer poder compartilhar ideias sobre desenho, ainda mais através do olhar do artista/pesquisador Flávio Gonçalves, que escreve o texto crítico da exposição Área de Cultivo.
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